Mal detectado por instrumentos, subestimado por meteorologistas, o
furacão Catarina atingiu 200 quilômetros de área entre o Rio Grande do
Sul e Santa Catarina, na madrugada de 28 de março de 2004. Casas foram
ao chão, quatro pessoas morreram e milhares ficaram desabrigadas. Ainda
hoje, o Catarina inspira estudos e suposições. Nesses 10 anos, surgiram
pelo menos três evidências sobre o primeiro furacão registrado no
Atlântico Sul. Primeiro, a explicação para a transformação de um ciclone
extratropical em furacão está no fundo do oceano. Segundo, indícios
apontam que o Catarina teria sido um furacão de categoria 2, e não 1,
como se calculava. Por fim, os sistemas meteorológicos brasileiros pouco
avançaram — e há dúvidas se, hoje, poderiam prever, de forma mais ágil e
precisa, uma tempestade semelhante.
É nessa possibilidade de repetição do passado que reside o maior
receio: o de que algum dia ou alguma noite as condições propícias possam
voltar a se conjugar, e um furacão renascerá do mar com seu olho
gigantesco mirando a costa brasileira. Para o PhD em física pelo
Massachusetts Institute of Technology (MIT) e aposentado do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Marcio Luiz Vianna, o Catarina
foi uma raridade.
Uma conjugação de fatores possibilitou que o fenômeno invertesse a
lógica de se dissipar no mar. O que não quer dizer que não possa se
repetir. Uma coisa é certa: a região atingida é propícia aos exageros
climáticos, que podem estar se exacerbando por causa do aquecimento
global. Nos cinco primeiros anos após o furacão, toda vez que um
temporal se aproximava da região, a imprensa buscava comparação com o
fenômeno. A frase "mas não vai ser como o Catarina", dita por
meteorologistas para acalmar a todos, multiplicou-se em jornais,
revistas, rádios e TVs até a história arrefecer nos anos seguintes. Na
vida dos moradores das cidades afetadas, o furacão mantém o trauma. E
possivelmente ainda será assim por muitos anos.
No Brasil, havia pouca informação
Uma provocação botou o físico aposentado do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe) Marcio Luiz Vianna no caminho do furacão
Catarina. Hoje com 73 anos, o cientista já havia realizado algumas
proezas. O PhD em física pelo MIT, em 1975, foi uma delas. Também
realizou pesquisas com foco nos oceanos. Derivando para os feitos da
vida pessoal, gosta de contar que participou da "festa de arromba" da
chegada da Apollo 13 à Terra, em 1970.
Portanto, a situação de Vianna era bem confortável quando a sua
parceira na empresa e ex-aluna de mestrado Viviane Menezes o provocou a
estudar o Catarina. A forma como ocorrera a transformação do ciclone em
furacão e a mudança do seu trajeto eram as incógnitas. Vianna e Viviane
acreditavam que poderiam desvendar o segredo com base em suas
experiências na análise de dados observacionais de qualquer natureza.
A dupla estava confiante de que os aspectos oceanográficos teriam
influenciado na trajetória do Catarina. Havia pouca informação no
Brasil, mas satélites e argo floats (espécie de boias submarinas que
ficam uns 10 dias a 2 mil metros de profundidade e sobem para transmitir
seus dados por satélite) ligados a um projeto internacional tinham
registros em abundância.
Os pesquisadores desvendaram a causa do comportamento anômalo do
Catarina. Descobriram a existência das chamadas "panelas de água
relativamente quente" (denominadas de vórtices de núcleo quente), a
centenas de quilômetros da costa. As panelas permitiram que o Catarina
mudasse o trajeto que seguia, em sua inicial direção para Leste
(África), voltando no rumo da costa brasileira. No caminho, foi se
abastecendo de água quente das panelas até se transformar em furacão.
— Nosso trabalho explicou bem o que houve — afirma Vianna.
Desvendar o Catarina foi intrigante, conta:
— Para o pesquisador, fazer ciência é um prazer.
Falando em diversão, e a festa da Apollo 13? Foi quase um Woodstock, com o pessoal da ciência, relembra. Durou dois dias:
— Anos 70, né?
Pouco avanço na prevenção
Na última segunda-feira, um alerta estampou o site da Epagri/Ciram,
órgão oficial de previsão do tempo em Santa Catarina. Postado às
15h40min, o comunicado anunciava que, em até quatro horas, o tempo
viraria no Estado, e um temporal com chuva, descarga elétrica, granizo e
ventos de até 100 km/h atingiria municípios de cinco regiões. Às
18h30min, uma hora antes do previsto, o tempo fechou.
Há um ano, previsões assim — com hora e prazos exatos — viraram
rotina. A divulgação das informações, direto para os catarinenses, não
era costume dos meteorologistas até pouco tempo atrás. De resto, a
região ainda pena para avançar.
Os primeiros passos de um avanço na área só começaram a ser
percebidos em 2008, quando novas estações meteorológicas foram
adquiridas. Há um ano foi instalada a primeira — e única — boia
oceanográfica em águas catarinenses, que ainda não é monitorada por
instituições de pesquisa locais. Só em julho um radar de dupla
polarização e alta tecnologia conseguirá dar a assistência para prever
desastres naturais. Com ele, 77% do território catarinense estará
protegido.
— Estamos hoje num processo de reordenamento total no que se refere à
previsão do tempo. Antes só íamos lá contabilizar o prejuízo, hoje
vamos formar uma cultura de autoproteção — diz o secretário da Defesa
Civil, Milton Hobus.
Para o meteorologista Leandro Puchalski, do Grupo RBS, pouco ou quase nada foi feito em relação à previsão e prevenção.
— O radar é um ganho, mas não é solução. Se for um furacão muito
forte, o raio de monitoramento só vai ter informações quando estiver
quase chegando à costa. Não haverá tempo para evacuar uma cidade, por
exemplo.
A pós-doutora Magaly Mendonça, coordenadora do Laboratório de
Climatologia Aplicada e do Grupo de Estudos de Desastres Naturais da
UFSC, acredita que o Catarina representou um marco no sentido de
reconhecer o quanto a população está exposta a desastres climáticos.
Para ela, caso ocorresse um novo furacão, o Estado estaria despreparado
para enfrentá-lo, sem um plano para ser executado.
Em Torres, cidade gaúcha mais atingida pelo Catarina, o susto de 2004
não repercutiu em reforço. Desde o Catarina, o efetivo dos bombeiros no
município diminuiu de 25 para 20 militares, enquanto a população
cresceu.
Força do vento é reavaliada
Como se fosse formada por caçadores de tornados de filmes americanos,
nos dias 27 e 28 de março de 2004, uma equipe de cinco cientistas
esteve em diversos locais atingidos pelo Catarina. Integrantes do Grupo
de Estudos de Desastres Naturais (GEDN), do Departamento de Geociências
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), formaram uma parceria
com a Defesa Civil catarinense e realizaram estudos in loco para
identificar a intensidade do fenômeno. Como não havia equipamentos
confiáveis de medição da velocidade do vento, coletaram dados de outras
maneiras, em campo (fotografias, entrevistas e mensurações) e nos
relatórios de Avaliação de Danos (Avadan) enviados à Defesa Civil.
Também foram distribuídos 161 questionários em Passo de Torres,
Balneário Gaivota, Arroio do Silva, Araranguá, São João do Sul, Sombrio e
outros nove municípios. Antes do resultado, os cientistas tinham
certeza de que a força do Catarina era inédita no país.
— Fomos a única equipe do mundo que esteve no olho do furacão — diz o
professor Masato Kobiyama, que foi integrante do grupo e hoje leciona a
disciplina de Gerenciamento de Desastres Naturais na UFRGS.
Dos estudos nasceu o artigo "Impacto do furacão Catarina sobre a
região sul catarinense: monitoramento e avaliação pós-desastre". Os
dados apontaram que o Catarina chegou perto de 180 km/h, alcançando o
nível 2 na escala Saffir-Simpson, que mede a velocidade do vento dos
furacões. A conclusão não foi uma unanimidade no meio científico. Até
hoje, boa parte dos meteorologistas considera que o nível foi 1, com
velocidade máxima de 153 km/h. Há ainda quem não admita sequer a
classificação de furacão, mantendo a concepção de ciclone.
O debate sobre o Catarina se prolongou, gerou artigos científicos,
congressos e, na prática, nenhuma medida para minimizar os efeitos de um
novo furacão para a população que vive em lugares de risco, lamenta o
geógrafo Emerson Vieira Marcelino, um dos autores do estudo.
Decepcionado, desde 2008 é pastor evangélico em Florianópolis. Diz que,
assim, chega mais perto do povo. Na comunidade, conseguiu implantar
procedimentos para o caso de desastre ambiental.
O IDEAL PARA PREVER UM FURACÃO— Boias oceanográficas
— Radares meteorológicos
—
Aviões meteorológicos para sobrevoar o olho do furacão e, por meio de
monitoramento local, determinar pressão, velocidade e deslocamento do
sistema
— Modelos numéricos de previsão de trajetória específicos para o Brasil
PARA QUE SERVE A BOIA— É instalada em
alto-mar para captar variáveis atmosféricas (como precipitação, umidade,
vento e radiação) e oceânicas (como salinidade, temperatura e pressão)
que impactem nas condições climáticas do país
— É formada por diversos sensores
—
Na torre superior, acima da água, há pluviômetros (para medir a
quantidade de chuva), anemômetros (para indicar a direção e a velocidade
do vento), espectrorradiômetros (para checar a radiação solar),
termômetros, GPS e medidores da concentração de gás carbônico e da
umidade relativa do ar.
— Na parte submersa, há um cabo de 4 mil
metros de comprimento fixado ao fundo do mar. Ao longo dos primeiros 500
metros do cabo, a partir da superfície, há sensores como fluorômetros
(que medem a concentração de flúor), espectrorradiômetros e termômetros.
Foto: Félix Zucco
Os anjos da noiteAs súplicas que compuseram a
sinfonia de 28 de março de 2004 em Torres se enraizaram na mente do
bombeiro da reserva Sidnei Scheffer de Matos, 48 anos. Sempre que tem
temporal, lembra a cena de uma mulher sobre um colchão, disputando
espaço com a tesoura do teto, que caíra sobre a cama nas proximidades da
Guarita.
Na escuridão, no meio do entulho, Matos foi puxando a
mulher. Adiante, onde ficou menos complicado caminhar, decidiu tomá-la
nos braços. Então, um destroço caiu sobre suas costas. A casa se
desmanchava. Cansado, ele cruzou pelos restos do imóvel e alcançou o
caminhão dos bombeiros. Deitada sobre um banco, a vítima foi levada ao
QG. Lá chegando, levantou e correu. Os olhos de Matos ficam vermelhos e
molhados ao contar a história. O bombeiro nunca recebeu tratamento
psicológico. Também não foi promovido por bravura. A promoção veio da
comunidade, que nomeou os que trabalharam nos resgates são chamados de
Anjos da Noite.
Foto: Félix Zucco
Casas mais fortesFecham-se os olhos de
Valdir da Silva Fermiano, 55 anos, descendente de açorianos cujas vidas
se integravam ao mar com harmonia. Proprietário de um
restaurante-pousada na beira-mar de Balneário Gaivota (SC), Fermiano
parece cansado da batalha que perdeu há 10 anos. Frente à ira do
Catarina, tentou segurar vidros e paredes do seu estabelecimento. Tudo
ruiu ao seu redor. A reconstrução levou meses.
— A gente ficou tudo meio atordoado — suspira.
O
município catarinense ainda tem vestígios da passagem do Catarina. A
sede dos pescadores estava parcialmente construída, na época. Depois do
furacão, nunca mais a obra foi retomada (foto acima). A tempestade mudou
os costumes na construção civil de Gaivota. Mais de 80% das novas
construções contam com uma laje entre o telhado e o interior das
residências, estima o chefe de gabinete da prefeitura, Luiz Carlos da
Silva.
Foto: Félix Zucco
Meses de internação — Era como se eu não existisse — lembra a pescadora Maria Martins, 52 anos, sobre o furacão Catarina.
Ela
estava sozinha em casa em Balneário Gaivota. Quando o telhado e o forro
começaram a ser levados pela ventania, correu em direção ao banheiro.
No caminho, uma telha caiu sobre o seu braço direito, quebrando-o. Maria
passou horas no banheiro e viu sua casa ser despedaçada em volta. Não
bastasse a devastação, logo depois a residência foi saqueada. Uma semana
antes, tinha sofrido com a morte de uma filha adotiva de seis anos em
um acidente de carro. A pescadora se internou em uma clínica em Ana
Rech, Caxias do Sul, onde trabalhava o marido, Estevan Martins, 65 anos.
Não o reconhecia. Nem aos filhos. Somente depois de seis meses é que
pode deixar a clínica e voltar a Balneário Gaivota. Nunca reconstruiu o
forro da casa.
— Perdi o amor pela casa — diz.
Em dia de vento forte e chuva, ela toma calmantes.
Foto: Félix Zucco
Sem indenização Uma década depois do
Catarina, o bairro das Ilhas, em Araranguá (SC), ainda não se recuperou.
As ruínas da oficina de Hamilton Vieira Valério, 56 anos, tornaram-se o
símbolo dos efeitos do furacão na região. Descobriu os estragos no dia
seguinte, após ter passado uma noite e madrugada terríveis segurando a
porta de casa com uma mesa na tentativa de conter o vento. Sem dinheiro
para reformar a oficina, Valério foi deixando para depois. O mato tomou
conta do espaço, que virou um depósito de entulhos. Como o local não
servia de moradia, ele não obteve uma indenização do governo. Nem as
telhas conseguiu.
— A única coisa que o Estado deu foi telha.
Mas, quando fui buscar, não tinha mais. Tem gente que levou telhas de
caminhão, antes de mim — recorda.
Além da oficina, Valério perdeu um Passat, uma canoa, um trailer e equipamentos de solda, tudo esmagado por destroços.
Foto: Félix Zucco
Da ruína à superaçãoNa feição séria do
agricultor Valentim Zanoni, 52 anos, estampa-se a recordação nada
bem-vinda. Naquela noite, o susto foi compartilhado pela mulher e pelos
três filhos na roça, na Barra da Sanga, Forquilhinha (SC). As crianças
foram para debaixo da mesa. Os pais se apavoravam com o aguaceiro que
invadia a residência. Os equipamentos de plantio voavam no galpão. No
final, o milharal de seis hectares estava perdido.
— Nunca vi o milho ficar deitadinho, assim — lembra.
Zanoni
não esmoreceu. Baixou a cabeça, replantou o milho, que agora viceja a
caminho da colheita. Hoje, a vida está melhor. Fala com orgulho do carro
e da casa novos. Restou a ponta de insegurança quando um relâmpago
aparece no horizonte:
— Tenho medo. Dá essas trovoadinhas, e a gente acha que não vai dar nada. Mas eu vou para dentro de casa.
Foto: Félix Zucco
Marcado pelo SPCPerder a casa em Passo de
Torres (SC) não foi o único incômodo para o ex-pescador João Carlos
Kejellim e sua família. Aos 45 anos, ele diz estar irremediavelmente
marcado pelo SPC, o Serviço de Proteção ao Crédito. Não pode comprar
carro, financiar imóvel, nada. Tudo por causa do Catarina. Nada sobrara
da residência além de uma mesa, a geladeira e o fogão.
— A
prefeitura construiu uma casa nova, mas resolveu nos cobrar R$ 55 por
mês. Não conseguia nem comprar comida para os filhos, como ia pagar
isso?
A família ficou dois anos no imóvel emprestado, em
situação precária. Adquiriu uma padaria e a vida melhorou um tanto. O
nome do ex-pescador, porém, continua no SPC. Ele investe na amizade com
um ex-vereador para tentar limpar a ficha.
Foto: Félix Zucco
Exemplo de resiliênciaEm fevereiro deste
ano, um ciclone de amplitude bem menor do que o Catarina atingiu a
região mais frágil de Torres, nas cercanias do Parque da Guarita. Passou
mais concentrado do que o Catarina, sem abranger grandes áreas. Bem no
meio do caminho do aguaceiro e da ventania estava a pousada de Maria
Selena Assmann, 53 anos. Ela costuma dizer que está há 15 anos em Torres
sem que o vento consiga "correr com a gente".
— Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come — brinca.
Finca
pé e reconstrói o que foi perdido. Como a pousada, completamente
destelhada pelo ciclone, resultando em perdas financeiras gigantes para
Maria Selena, como o cancelamento das reservas para o Carnaval. Telhas
doadas pela prefeitura ajudaram a recompor um pouco a construção. Só que
ainda falta muito para arrumar, e a obra deve levar o ano todo na Rua
Santa Luzia, calcula Maria Selena.