Cadê o apocalipse?
Nunca os céticos do aquecimento global pareceram estar tão certos – e nunca estiveram tão errados
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O fato de a temperatura não ter acompanhado a escalada do gás carbônico tem levado alguns a supor que a interferência humana no clima tem sido uma espécie de ilusão coletiva dos cientistas. Ou até uma conspiração anticapitalista. Não poderia haver época mais propícia para desacreditar a climatologia. A crise econômica iniciada em 2008 refreou o ímpeto da humanidade em promover a transição dos combustíveis fósseis para a energia limpa. O acordo climático global, que deveria ter sido fechado em Copenhague em 2009, foi postergado para 2015. Desde que Wall Street derreteu, o apoio dos americanos ao financiamento para energias renováveis caiu 21%, segundo uma pesquisa do Centro para Comunicação de Mudança Climática da Universidade George Mason, nos Estados Unidos. O número de americanos preocupados com o aquecimento global caiu de 63%, em 2008, para 52%, em 2013. Dos que acreditam, 49% acham que ele é causado pela humanidade, em comparação com os 57% em 2008. Apenas 45% dos americanos acham que existe consenso científico a respeito.
Por que, então, uma revisão de 12 mil estudos internacionais recém-publicada concluiu que 97% dos cientistas concordam que as mudanças climáticas e o aquecimento global são resultado da atividade humana? Estão loucos? Como explicar, então, a pausa na aceleração do aquecimento da atmosfera nos últimos anos?
“Períodos de aquecimento mais lento podem existir num planeta que continua a aquecer”, afirmou Hawkins a ÉPOCA. “A variabilidade natural do clima pode mudar temporariamente a velocidade da mudança. Períodos com taxas mais lentas são esperados, e com taxas mais rápidas também.” Dados da Organização Meteorológica Mundial, divulgados em maio, mostram que 12 dos 13 anos mais quentes da história desde o início das medições, em 1850, foram o período de 2001 a 2012. Os anos de 2005 e 2010 estão quase empatados como o mais quente.
Diante do platô dos últimos anos, alguns pesquisadores consideram que a velocidade do aquecimento pode ser mais baixa do que a esperada. “Até agora, a maioria de nós sentia, com pessimismo, que, independentemente do que fizéssemos, o mundo aqueceria mais do que 2 graus”, diz Myles Allen, da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Esses 2 graus, para os cientistas, são o limite para evitar consequências catastróficas. “Agora, esse não é um prognóstico fechado.” Na visão dele, é como se a humanidade estivesse num carro em direção a um muro e descobrisse que não vai mais a 120 quilômetros por hora, mas a 80 quilômetros por hora. Daria mais tempo para puxar o freio.
Em abril deste ano, Trenberth e dois colegas do Reino Unido publicaram no periódico Journal of Geophysical Research um estudo que mostra como o sistema natural é complexo – e para onde pode ter ido o calor que não se expressou na atmosfera. Com base na análise de dados sobre temperatura oceânica coletados de 1958 a 2009, o trio descobriu que as camadas mais profundas do mar, abaixo de 700 metros, esquentam de forma acelerada. Na última década, 30% do aquecimento oceânico ocorreu em águas profundas. Isso aconteceu devido a mudanças cíclicas nos ventos no Oceano Pacífico, que misturaram as camadas de água e fizeram com que o calor fosse exportado para o fundo. Como o oceano é a maior esponja para a energia do planeta – ele absorve 90% dela –, o fenômeno pode ajudar a explicar a desaceleração da elevação da temperatura da atmosfera. “A energia retida pela Terra pode ir para vários lugares: pode derreter o gelo no Ártico, esquentar o ar ou aquecer as profundezas do oceano”, diz Trenberth.
Conclusões mais seguras sobre o comportamento do clima e as perspectivas para as próximas décadas serão conhecidas no dia 26 de setembro, quando o painel do clima da ONU, o IPCC, divulgar seu novo relatório. O levantamento, produzido por milhares de pesquisadores ao longo dos últimos seis anos, mostrará em detalhe como o planeta acumula energia e quais serão as consequências para a civilização e os ecossistemas ao longo deste século. É uma compilação do que há de consenso entre milhares de estudos publicados nos últimos anos. O último relatório do gênero, de 2007, deu ao IPCC o Prêmio Nobel da Paz. Afirmava que o aquecimento é “inequívoco”, que a Terra ganharia de 2 a 4,5 graus célsius até 2100. E que a maior parte do fenômeno era “muito provavelmente” causada por atividades humanas. Na linguagem estatística usada pelo IPCC, isso denota uma certeza maior que 90%. O relatório também mostrava o resultado de simulações de computador sobre o impacto do aquecimento na Terra no nível do mar no futuro. Até 2100, os oceanos poderiam subir até 59 centímetros em média no mundo. ÉPOCA teve acesso a algumas das principais conclusões do próximo relatório. Ele dirá que o planeta poderá aquecer de 2 a 4 graus até 2100 e que é “virtualmente certo” que o aumento da temperatura observado nos últimos 60 anos é produto de ação humana. Tal confiança é maior que 99%. O relatório afirmará que o nível do mar poderá subir até 1,2 metro em 2100, caso as emissões não sejam reduzidas. Com 1 metro de elevação, 150 milhões de pessoas e US$ 1 trilhão em patrimônio estariam diretamente ameaçados. O IPCC tem um bom histórico de acerto. No último relatório, entre milhares de dados, o único incorreto era uma previsão sobre o ritmo de derretimento do Himalaia.
Como os cientistas podem ter tanta certeza, então, de que o aquecimento atual é responsabilidade humana? Um dos principais desafios dos pesquisadores é separar as mudanças provocadas por nossas atividades das alterações naturais que ocorrem na Terra. Discernir o sinal da interferência humana em meio à variabilidade natural do clima é um trabalho de detetive. Requer o exame de diversas evidências: gelo, corais, medições de vapor d’água, chuvas, temperaturas do ar em diferentes altitudes, conteúdo de calor do oceano em diversas profundidades. São medições feitas no mundo inteiro, com termômetros, satélites, balões meteorológicos, boias oceânicas e até instrumentos pouco ortodoxos, como elefantes-marinhos com sensores na cabeça.
Uma das diferenças essenciais entre as oscilações climáticas naturais e a provocada por nós está na escala de tempo de cada fenômeno. “Os céticos têm razão quando afirmam que a humanidade não causa as maiores mudanças climáticas”, diz José Marengo, climatologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coautor de um dos capítulos do novo relatório do IPCC. As grandes alternâncias entre períodos frios, as eras glaciais e fases mais amenas são determinadas por variações na órbita da Terra. Elas acontecem mais lentamente, em prazos de milhares de anos. Há cerca de 6 mil anos, a Terra estava tão quente quanto hoje. A diferença é o ritmo atual. Uma variação de 0,5 grau, que levava de 2 mil a 4 mil anos para ocorrer no ritmo natural, agora acontece em menos de um século. É muito rápido para que as espécies, os ecossistemas, ou mesmo as nações consigam se adaptar.
Usando esse padrão, Santer foi um dos primeiros cientistas a determinar e a medir a influência humana no clima. Primeiro, ele e sua equipe executaram diversos modelos climáticos de computador, excluindo os efeitos dos gases da atividade humana, para tentar avaliar qual teria sido a variação natural do clima nos últimos 33 anos. Essa variação natural é conhecida como “ruído”. Em seguida, analisaram os dados de temperatura da alta atmosfera e da baixa, coletados por satélites ao longo desse período, para tentar distinguir o sinal humano do ruído. O grupo verificou que a alta atmosfera mostra um sinal de resfriamento de 26 a 36 vezes maior que o ruído. A baixa atmosfera mostra um sinal de aquecimento pelo menos 5,5 vezes maior do que a variabilidade natural do clima. Esse tipo de número é chamado pelos estatísticos de “nível sigma”. Denota a probabilidade de que o fato observado se deva ao acaso. O astrônomo da Universidade Harvard Robert Kirshner costuma explicá-lo com a seguinte frase: “Com um sigma, aposto minha casa; com dois, minha mulher; com três, meu cachorro”. Cinco sigmas equivalem a uma probabilidade de 1 em 35 milhões. “Não quero pensar no que ele apostaria com 26 sigmas”, diz Santer. “Não conhecemos nenhum modo de variabilidade natural que possa produzir esse resfriamento da alta atmosfera ao longo de três décadas. Nem ondas de calor marcianas, nem mudanças no fluxo de energia do Sol, nem algum modo desconhecido de variabilidade natural. A única coisa capaz de causar isso são os gases de efeito estufa, emitidos por humanos.”
Os modelos de computador não são perfeitos, como comprova o platô atual na temperatura da atmosfera. Ele não estava previsto pelos cálculos. Mas, para compensar a imprecisão, os cientistas costumam ser conservadores. Em alguns casos, as observações mostram uma situação ainda mais grave que a prevista. É o caso do Ártico. Os cientistas já imaginavam que aquela seria a região do planeta mais sensível ao aquecimento, devido a um círculo vicioso: o calor em excesso derrete o gelo marinho que recobre aquele oceano. Isso diminui a cor branca do Ártico e expõe o oceano, mais escuro. Quanto mais escura a cor, mais calor é absorvido – e maior a temperatura. O IPCC previu, em 2007, que esse ciclo de calor levaria ao desaparecimento do gelo marinho no verão do fim do século XXI. Hoje, os cientistas preveem um Ártico livre de gelo até 2030. “Essa é uma situação na qual a gente odeia dizer ‘eu avisei!’, mas eu avisei”, diz Mark Serreze, diretor do Centro Nacional de Dados de Gelo e Neve dos EUA. Serreze monitora o Ártico em tempo real desde 2007. Ele cunhou a expressão espiral da morte para descrever o padrão atual de degelo.
Parte do conservadorismo se explica, porque o IPCC é sujeito a ingerências políticas. Como o nome diz, trata-se de um painel intergovernamental. As conclusões mais alarmantes, que demandariam mais ação dos líderes mundiais, acabam ficando fora nas negociações, que incluem representantes dos governos para moldar o relatório final, divulgado ao público. Na última edição, os autores tiveram de retirar do relatório as estimativas mais altas sobre o papel do desmatamento nas emissões. A pedido do governo brasileiro.
Dada a complexidade da Terra, ainda há incertezas grandes, especialmente nas projeções futuras de temperatura. Os modelos climáticos não conseguem estabelecer com precisão o aumento de temperatura para cada elevação na concentração de gases poluentes. A formação de nuvens é vital para avaliar a resposta do clima. Elas podem ajudar a resfriar o planeta, ao refletir os raios solares. “As nuvens têm um impacto de 2% a 3% sobre a alteração da temperatura”, diz Paulo Artaxo, da USP e coautor do IPCC. Modelos de computador continuam imprecisos demais para prever a dinâmica das nuvens. Outro fator pouco entendido é a absorção de calor pelo oceano, como a que deteve o aquecimento da atmosfera nos últimos anos. Também se sabe pouco sobre a distribuição de partículas que esquentam o planeta (fuligem) e que esfriam (aerossóis).
Superar essas incertezas, se algum dia for possível, ajudará a traçar um quadro mais preciso do aquecimento. Mas não mudará o que já se sabe sobre a gravidade da ameaça. Trata-se de um alerta inconveniente, que parte da humanidade insiste em ignorar. Enquanto esperamos para tomar uma atitude, seguimos queimando combustíveis fósseis cada vez mais abundantes, com novas técnicas de exploração de petróleo, nos EUA e no Canadá. A concentração de gás carbônico na atmosfera segue sua escalada. No ritmo atual, em 25 anos a Terra terá passado o nível de concentração de gases perigosos, além do qual a mudança climática poderá sair do controle. Evitar que isso aconteça, dado o atual cenário energético do planeta, exige uma revolução tecnológica e econômica. Além de vontade política.
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